Na Semana dos Povos Indígenas, Cinema da Fundação exibe o filme “Adeus, Capitão”

22 de abril de 2023

Cinema da Fundação promove, neste sábado (22), a primeira exibição do longa-metragem “Adeus, Capitão”, do antropólogo, indigenista e documentarista franco-brasileiro Vincent Carelli e da diretora de cinema Tatiana Almeida, como parte das comemorações da Semana dos Povos Indígenas. A sessão será realizada no Cinema da Fundação/Museu, no campus Gilberto Freyre da Fundação Joaquim Nabucoj, em Casa Forte, às 18h, e contará com a participação dos realizadores, Vincent e Tatiana.

O documentário fecha a trilogia informal que Vincent Carelli dedicou ao povos indígenas brasileiros, ao lado de “Corumbiara” (2000), sobre o massacre desse povo em Rondônia, e “Martírio” (2017), que conta a luta perdida dos guarani-kaiowá para retomar seus territórios, no Mato Grosso do Sul. Em 2009, “Corumbiara” ganhou três Kikitos no Festival de Gramado: Melhor Filme, Diretor (Vincent Carelli) e Prêmio do Público. “Martírio” foi premiado no Festival Sesc de Cinema (Melhor Documentário) e no Festival de Cinema de Mar del Plata, como Melhor Filme Latino-Americano.

“Adeus, Capitão”, teve sua estreia mundial no Festival do Três Continentes de Nantes, na França. Na obra, somos apresentados à vida e legado do “Capitão” Krohokrenhum, líder do povo indígena Gavião (PA). Ele morreu em 2016 e o documentário segue suas filhas e netas que continuam sua história e jornadaDas guerras entre os “índios valentes” ao contato com o “homem branco”, da devastação do contágio ao fim do mundo Gavião, Krohokrenhum encabeça um movimento para reconstruir a memória do seu povo, acompanhado por Vincent Carelli desde as primeiras câmaras em VHS. Concluído após a morte do Capitão, o filme é a devolução póstuma desses registros à comunidade Gavião.

Entrevista // Vincent Carelli, antropólogo, indigenista e documentarista franco-brasileiro

Em entrevista à Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Vincent Carelli detalha o processo de criação de “Adeus, Capitão” e aborda a reconstrução da memória de um povo por meio de imagens. Confira os principais pontos:

Cinema e povos indígenas

O mundo do cinema e o mundo indígena já não estão tão distantes. O projeto Vídeo nas Aldeias (criado por ele em 1986) se transformou numa escola de cinema para povos indígenas. A partir da década de 1990 e 2000, formamos a primeira geração de cineastas indígenas e, hoje em dia, há coletivas de cinema em aldeias de todas as regiões do Brasil.

Cinema indígena

cinema indigena é emergente e está se consolidando. Essa geração que formamos, agora, já forma outras gerações. Pelo sucesso que há dos filmes, por toda a questão indígena, jovens cineastas têm colaborado na formação, buscando parcerias, trabalho em colaboração, com filmes chegando em Cannes, por exemplo.

Arte

Hoje, ouço curadores afirmando que não é possível fazer um festival de cinema sem contemplar um componente indígena. Lutamos por 40 anos para chegar nisso. É um fenômeno que acontece não só na área de cinema, mas, também, na área de artes plásticas, na área da literatura, os indígenas estão chegando junto e há interesse crescente pelos povos indígenas nessas áreas das artes.

O que há de melhorar com o Ministério dos Povos Indígenas

Acho que as melhorias virão, principalmente, na área política. O Presidente Lula fez uma revolução. É simbolicamente revolucionário para o País finalmente ter um ministério dirigido por indígenas, com toda a cadeia de postos sendo substituída na Funai. E a demonstração disso já havia sido dada na posse, uma cerimônia inacreditável de um País que saiu de um governo fascista para uma revolução simbólica. Lula fez de forma muito segura. Tradicionalmente, defender a Amazônia e os indígenas tira votos, mas ele não se intimidou, assumiu a pauta.

Brasil

Quem trabalha há 50 anos como eu nesta área, viu um Brasil que vivia um apartheid, com indígenas isolados, com controle total do estado, inclusive regulando o ir e vir deles. Saímos disso para uma real integração, mas é um processo frágil, se entrar a direita de novo (no poder), certamente não haverá ministério indigena, mas foi um passo enorme, vai qualificar muita gente.

O olhar do autor sobre ‘Adeus Capitão’

O ‘Adeus, Capitão’ talvez seja o exemplo mais completo dos resultados obtidos do projeto Vídeo nas Aldeias. Ele narra 60 anos da vida de um grande chefe. Ele mesmo narra as guerras do pré-contato entre os povos Gavião, ele narra a hecatombe após contato com o contágio e como ele acreditou que o mundo Gavião tinha se acabado. Até que ele renasceu das cinzas e participamos deste momento, assumiram o território deles no Pará e começaram um processo de reconstrução da memória do seu povo.

A contribuição de Vincent

Eu chego com o vídeo, mostro a eles a primeira experiência com essa imagem e quando se veem, descobrem que podem produzir, gravar e assistir imediatamente, entraram numa catarse de produzir lembranças, vivências, refazem uma furação de nariz e de beiço. Mostro isso e era o que o Capitão estava precisando. Filmei os rituais, mas não era com roteiro, era registro de memória, os cantos, as danças, a coreografia, os preparativos, são registros para que as novas gerações aprendam e que fazem o povo Gavião renascer.

Memória

O filme conta essa relação, levei o Capitão a outros povos. Colaboramos no processo de memória para novas gerações e o vídeo é uma ferramenta fundamental. Isso está sendo visto e revisto. E talvez o filme seja longo porque os episódios reconstituem a memória do povo, mas o desenvolvimento do sudeste do Pará não para de atravessar a reserva, a estrada, a linha de transmissão, a ferrovia, vai comendo território. Então, são dois movimentos opostos dentro do filme, como um retrato dos últimos 30 anos da Amazônia.

Produção

Faço filmes tendo os indígenas como referência, não fiz ideias que saíram só da minha cabeça, todos foram pactuados, pedidos pelos indígenas, em colaboração com eles. Fazer esse filme foi muito importante e quem assiste entende claramente que foi a devolução final ao Capitão do seu projeto de memória.

Filmagem

A gente orienta, mas não estamos presentes no local da filmagem, é preciso estabelecer suas relações com personagens sozinhos, aprendi muito nesses anos, eles têm acesso às pessoas, as pessoas que dominam a cultura falam muito mal português, e essa intimidade deles com as pessoas produz uma visão que jamais eu poderia produzir, mesmo com toda intimidade que eu tenho.

Impacto

Eles produziram uma mega projeção para a exibição, mais de mil indígenas assistindo, uns chorando, enfim… muito importante para a nova geração. Muitos que achavam o Capitão um chato que estava reclamando que não seguiam as tradições, quando assistiram o filme de uma história que eles não conheciam por completo, eles entenderam a importância desse ícone do povo deles. Me disseram que esse filme foi um ‘tapa na cara’, mobilizou a juventude a chegar junto, os comunicadores indígenas estão engajados, jovens voltam a fazer selfies pintados, lindos, com seus ornamentos.

Capitão

Esse filme é feito nessa perspectiva de atender e completar o projeto dele com o vídeo e fazer essa devolução da vida dele narrada por ele nas questões internas e por mim dando o contexto geral do desenvolvimento e das agressões ao seu território. presenciei as negociações com empresas, ele era muito duro, o povo Gavião foi despejado pois eram moradores de onde foi construída uma hidrelétrica e narro esses anos de trajetória do povo na sua recomposição e na sua retomada cultural, digamos.

Trajetória

Comecei a filmar em 1987, filmei até 1995, e voltei. Houve a entrada do alcoolismo, dos evangélicos e o Capitão se afastou da aldeia, surge uma nova juventude, que entra na faculdade e há uma crise de identidade. Diante disso, as mulheres resolveram chamar o Capitão e pediram para que ele, antes de morrer, ensinasse seu povo a cantar, a chorar, porque o choro é um canto. E ele passa os 6 últimos anos indo à aldeia, todo dia, para dar aula de canto a quem queria aprender.

Intimidade

Comecei a atuar no indigenismo com 16 anos, tenho 70. Sempre tive uma perspectiva próxima deles, muito íntima, desse projeto de protagonismo, de autonomia, porque antes do cinema eu fazia indigenismo, trabalhei na Funai, em ONG, apoiava lideranças com projeto de resistência. Depois, eu experimentei a ferramenta do vídeo, com muito sucesso.

Trilogia

Encerramos aqui a trilogia. Em Corumbiara, tratamos do genocídio de indígenas isolados. Em Martírio, abordamos o genocídio contemporâneo e, finalmente, em Adeus Capitão, podemos mostrar como se dá esse embate de civilização, embate de visões de mundo, como assimilam, como resistem, como evangélicos entram, como é percebido por uns e por outros. Essa questão é complexa, há quem pende ao lado de fora, depois há movimento de retomada e fica esse embate. São duas visões de mundo mas eles se integram.

Na Semana dos Povos Indígenas, Cinema da Fundação exibe o filme “Adeus, Capitão”